Raio X da guerra e da paz

Purushatraya Swami

Enquanto escrevo essas linhas, bombas e mísseis são despejados no inóspito e pedregoso Afganistão pelas forças militares mais poderosas do planeta. O dinheiro gasto com estes armamentos daria para solucionar uma boa parte dos problemas de fome, saúde e educação de milhões e milhões de miseráveis que vivem aquém dos limites de pobreza. Quanta energia desperdiçada! E de onde vem toda essa energia? Da exploração irrestrita dos recursos naturais de um planeta, hoje, depauperado. A miséria e o desastre ambiental, junto com o terrorismo, são as mazelas mais evidentes que atestam o fracasso de uma civilização que negligenciou e distanciou-se dos princípios e valores espirituais. No momento atual, combate-se o terrorismo odiento e covarde com guerra explícita. Ambos, colocam a população civil em risco. A grande dúvida é: Será esse o caminho para paz? A população do mundo sentir-se-á mais segura? O terrorismo será sufocado ou vai degenerar-se e expandir-se como um câncer? Somando-se a isso, assistimos, também, a falência gradual dos valores morais da sociedade humana, hoje, sem rumo, desamparada, amedrontada, sofrida e numa espiral crescente de degradação.

Pessoas sãs, hoje em dia, questionam seriamente quais são as verdadeiras causas de tudo isso. Como é que as coisa chegaram ao ponto que chegou. Estamos progredindo ou regredindo? Há esperanças para um futuro melhor? Como entender a verdadeira natureza dessa existência aparentemente sem sentido e, até, de certo modo, absurda?

Uma luz para compreendermos os mistérios deste mundo e da existência como um todo vem dos ensinamentos do Senhor Krishna no Bhagavad-gita. No décimo quarto capítulo deste texto sagrado encontramos maravilhosos ensinamentos que nos proporcionam entender, com profundidade, a dinâmica da natureza deste mundo. Trata-se dos três gunas, as qualidades ou modos da natureza, que inexoravelmente influenciam todas as atividades, fenômenos, comportamentos e relacionamentos de todos seres vivos. O primeiro modo, rajas, é o impulso criativo, que fornece o ímpeto para a expansão, domínio, progresso e criação de novas coisas. No lado oposto está a passividade, imobilidade e a tendência destrutiva natural do ciclo da vida. Esse guna é tamas. Entre os dois está sattva-guna, o status quo, o estado em que o processo criativo após ter chegado à sua plenitude é conservado e mantido, sem permitir que as forças destrutivas entrem em ação. é um estado dinâmico de existência plena. Nele há paz, harmonia, sabedoria e felicidade. é considerado o mais puro e mais difícil de ser conquistado.

Psicologicamente, os três gunas são chamados modos da paixão, ignorância e bondade. A sociedade humana do mundo moderno está demasiadamente influenciada pelo modo da paixão. O progresso, lucro, desenvolvimento tecnológico, ambição para dominar e controlar a Natureza e o endeusamento da ciência são os símbolos dessa civilização apaixonada. Em suma, o homem apaixonado de hoje está afogando-se num mar de desejos materiais sintetizados numa meta totalmente ilusória chamada ‘sucesso’, que resume-se basicamente em dinheiro, fama e poder.

A paixão não domada é avasaladora. Quando essa paixão criativa, que, em sua essência natural é rica, fértil, viva, que entusiasma e gratifica, que é uma das qualidades mais tipicamente humanas, ultrapassa certos parâmetros de equilíbrio e sensibilidade, essa paixão passa a degenerar-se e manifesta inúmeros efeitos colaterais pervertidos, altamente destrutivos. Para se detetar esse ponto crítico a partir do qual a paixão se degenera, a pessoa, analisando as circunstancias presentes e projetando suas conseqüências futuras, deve concluir que “chega de crescimento quantitativo; daqui para frente a ênfase é na qualidade”, quer dizer, interrompe-se o ciclo de paixão e estabelece-se sattva-guna, a bondade. Acontece que, para uma pessoa apaixonada, em meio à turbulência dos desejos, essa mudança de paradigma é praticamente impossível de ocorrer por si só e, inevitavelmente, os efeitos colaterais pervertidos do modo da paixão irão manifestar-se, completamente fora do controle da pessoa.

A paixão desenfreada é o terreno fértil para fazer brotar uma avalanche de desejos materiais, a grande maioria deles totalmente supérfluos. Quando a mente está assim dominada pela produção inesgotável de desejos, os efeitos colaterais da paixão brotam e instalam-se no coração da pessoa. A psicologia chama esses efeitos colaterais de “paixões irracionais”, que são, basicamente, o orgulho, a cobiça, a inveja, a luxúria e a ira. O estágio que se segue à mente ou coração infectado por essas paixões irracionais é a sua exteriorização, que, escusável dizer, irão produzir efeitos destrutivos no meio social.

é fato sabido que a dinâmica da sociedade tecnológica moderna visa criar estímulos que provocam intermináveis desejos nas pessoas, desejos esses que, basicamente, atendem a três supostas “necessidades” do homem apaixonado, a saber, a busca desenfreada de prazer sensual, sensação de sentir-se superior aos outros e uma compulsão neurótica, o consumismo. Na verdade, praticamente toda a complexa estrutura política e econômica governamental das nações poderosas do mundo de hoje está dedicada a satisfazer as demandas sempre crescentes de produtos e entretenimentos para uma sempre crescente massa de ávidos consumidores. As outras nações, aquelas consideradas ‘em desenvolvimento’ ou do ‘terceiro mundo’, tratam de imitar o mesmo modelo mundial, embora já comprovadamente falido, perdendo, assim, uma chance de ouro de estabelecer seus próprios parâmetros de desenvolvimento baseados na auto-sustentabilidade e valorização do homem. As metas e propósitos de um governo, que, idealmente, deveriam oferecer o melhor para os cidadãos, são desvirtuados para alimentar a grande ilusão de progresso material e estimular o mesquinho ciclo vicioso do consumismo, que tornam as pessoas cada vez mais iludidas, embotadas e escravizadas. Tudo isso, fruto dessa paixão indomável.

Como já dissemos, a exteriorização das paixões irracionais causam estragos ao meio social e pode assumir proporções que vão desde a escala individual até a mundial, caso haja uma pessoa envolvida, uma coletividade, uma nação, várias nações e assim por diante. Uma das principais características do modo da paixão é a competividade. Vemos essa competividade em toda parte, em casa, no trânsito, no trabalho, no futebol, na política, nos negócios. Quando essa competividade está colorida com inveja, cobiça, orgulho e ira torna-se altamente danosa, e se os agentes são nações, torna-se absolutamente danosa. O orgulho, da mesma forma, tem seu lado brando, orgulho de pertencer uma corporação digna de respeito, por exemplo. Mas o orgulho irracional transforma-se em arrogância, desdém, intolerância, discriminação, e leva à manipulação, exploração, etc. Desejos materiais contaminados com cobiça desdobram-se em sofreguidão, ganância, ambição insaciável. A capacidade de defender-se, quando contaminada por ira apaixonada manifesta a agressividade, a truculência, o ódio, o desejo de subjugar, expandir, controlar, e estimula uma corrida armamentista sem precedentes na história do mundo. Para armar-se, os governos desviam verbas trilhonárias para pesquisas e complexos industriais. Diz-se que cerca de cinqüenta por cento da comunidade científica mundial está comprometida direta ou indiretamente com a industria de armamentos. Há poucos dias foi noticiado que os Estados Unidos gastaram duzentos bilhões de dólares no projeto de um avião de combate que, em certo ponto do projeto, foi tido como ineficiente e, por fim, abandonado. O desperdício atinge cifras com cada vez mais zeros à direita. As guerras, cujas causas subjacentes são, invariavelmente, o controle da exploração dos recursos naturais do planeta, passam, então, a serem fatores de peso para o fomento de fantásticos negócios armamentistas. Em última análise, vemos como a paixão da meta ilusória de ilimitado progresso material acaba, por fim, diretamente associada com as forças mais destrutivas do modo da ignorância.

Na natureza, os três modos, rajas, sattva e tamas, funcionam harmonicamente. Uma semente germina, a planta cresce, desenvolve-se, mantém-se por certo período produzindo flores e frutos, e, ao fim de algum tempo, debilita-se e morre. O ser humano, por sua vez, pode interferir, em parte, em seu ciclo de vida. Invariavelmente, o período da infância e adolescência é apaixonado, a pessoa está crescendo, aprendendo e descobrindo o mundo. No final da juventude e maturidade, já com o mecanismo do intelecto e da razão desenvolvido, ela tem a capacidade de ajustar e fixar sua consciência em sattva-guna, através da auto-disciplina, ambiente apropriado e boa associação. A atribulada vida urbana não oferece condições favoráveis para se cultivar adequadamente tal estado de espírito. Com a consciência na bondade, as ‘paixões irracionais’, se bem que nunca exterminadas, são mantidas, com muita atenção e cuidado, latentes e adormecidas. A pessoa tem total auto-controle e sua vida é plena de realizações e contribuições para o bem estar geral. Ela irradia amor, paz, harmonia, sabedoria, felicidade real e realização espiritual. Na fase final da vida, quando a decrepitude toma conta de seu corpo, a pessoa deve manter sua consciência no modo da bondade e sair desse mundo ‘por cima’, deixando atrás um exemplo de vida a ser seguido.

Uma pessoa em sattva-guna pode iluminar muitas vidas. Não é por nada uma atitude passiva e egoísta. A bondade é altamente dinâmica e irradiante. Se uma pessoa em bondade torna-se um líder nacional, conduzirá, então, seu país nos caminhos da paz e de prosperidade e abundancia para todos, não somente para os privilegiados da elite. Essa prosperidade material não será conseguida com a exploração irrestrita dos recursos naturais, mas sim, dentro dos critérios racionais do desenvolvimento sustentável, em que a natureza é respeitada e conservada. Valores morais e espirituais brotam espontaneamente nessa atmosfera de fertilidade da consciência. As pessoas sentem-se seguras e são felizes com as necessidade básicas do viver digno. A raça humana atinge assim sua plenitude. Com disse o Senhor Krishna, no Bhagavad-gita: “Sattva-guna é a única possibilidade de ser feliz nesse mundo.”


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